T R A N S F E R
Ê N C I A
Para o leitor ávido, os olhos são
glutões insaciáveis: de aprendizado, de
geografia, de pequenas incursões nos recantos bucólicos ou boêmios das grandes
cidades, dos parques onde as pessoas gastam seu tempo livre passeando a vista
pelas palmeiras, pelos beijos dos enamorados, pelos peixinhos que nadam na pequena
lagoa ao lado, e onde o passante ausente de sua estória, vai beber na
taça da memória.
Quando leio isolo-me do mundo, e quando
a vida me chama para a realidade, geralmente tomo um susto. Não digo que fico
dentro de mim, porque sei que me transporto
para as páginas, para as palavras que divulgam histórias, que passeiam
entre o turbilhão de passageiros do tempo, que entram em lojas e botequins, que
invadem a existência de outras pessoas. O livro é e será eternamente um invasor
de privacidades; ele procura a verdade onde a mentira se esconde, onde a vergonha
toma banho de chuva na goteira da garagem.
Adoro viajar sem sair do conforto de
minha casa. Conheço grande parte do mundo, e de cidades que nem sabia que
existiam, de Conventos, Mosteiros, Catedrais e Cassinos que preenchem espaços
nobres para os turistas visitarem, para os de casa santificarem, e para o povo
respeitar nas beiras de suas estradas.
Naquela
tarde chovia todas as chuvas do aqüífero do firmamento, como se quisesse lavar
os pés dos querubins que andam descalços pisando nas nuvens. Saí correndo para
buscar um médico que viesse ajudar a pobre infeliz que chorava de tanta dor no
abdômen. Debaixo de chuva, todo molhado, procurando um taxi que me salvasse da
enxurrada, e diminuísse o tempo de espera da mulher; mulher esta que eu nem
conhecia, que nunca tinha visto na minha frente.
Passei correndo por outro pingüim,
pingando medo do temporal, com os olhos arregalados, a boca aberta e o espírito
beligerante.
_Onde fica o hospital? Perguntei
gritando àquele menino assustado.
_Fica logo ali, dobre na primeira rua à
esquerda e vai ver o letreiro iluminado.
O
“logo ali” estava muito distante, e percebi que o danadinho do menino estava
caçoando de mim, mesmo assustado e debaixo de chuva, escorrido como um pinto, e
riscado de relâmpagos, queria pregar-me uma peça nas pregas das procelas.
Até o hospital devia ter mais ou menos
uns 800 metros para eu correr em ruas alagadas, com medo de cair numa boca de
lobo, e desaparecer para sempre. Não podia parar, a urgência era levar o médico para atender a parturiente
deitada na calçada, molhada, sozinha, esperando ouvir o grito de seu bebê.
Quando cheguei ao Pronto Socorro,
ninguém me deu atenção: estava todo molhado, sujo, com um pé sem o sapato (onde
será que ficou meu sapato?), os olhos pingando desespero através dos óculos, a
agonia de pensar na pobre mulher abandonada, sem poder fazer nada para
ajudá-la.
Finalmente uma enfermeira me
perguntou:_O que você quer menino?
_Não sou menino, e preciso de um médico
urgente...
_Tá doente de que? Diga logo, não temos
tempo a perder!
_Não sou eu, é uma pobre mulher deitada
na calçada, lavada de sangue, sentindo as dores do parto.
_Se é parto, não é sangue. Fique
tranqüilo, a ambulância já vai buscá-la
para o Hospital.
_Eu tenho que ir na ambulância, pois só
eu sei onde a miserável está deitada, deitada não, derrubada pela dor.
E assim eu terminei de ler aquele
capítulo e fiquei imaginando a cena toda, como se dela fizesse parte. Senti que
havia me transferido para as paginas do romance; não estava mais na minha cama,
confortavelmente deitado, com a janela aberta, o vento soprando nos meus
hemisférios. Estava sim, na chuva, maltrapilho, exausto, indignado com os
acontecimentos que nos atropelam sem aviso prévio. Eu fazia parte da dor do
parto, do grito do nenê, da vida que acabava de chegar sob aquela chuva
torrencial, acompanhado da orquestra celestial: os trovões.
Quando
acordo, preparo-me para mais um dia de trabalhos corriqueiros que uma casa
admite incessantemente. Começo com coisas leves como regar o jardim, molhar as
plantas que estão sob teto, colocar água para o cachorro, comprar o pão para o
café da manhã. Faço essas pequenas obrigações sempre pensando no livro que
estou lendo. O fato é que sempre estou lendo um livro; não posso parar.
Terminei um e já começo outro que deixo na minha mesinha de cabeceira. Este é o
meu melhor vício, o meu outro lado que só os livros conhecem.
Sou
viciado no vício do aprendizado, vivo atolado na orgia dos filósofos, atropelo “o
não saber, sem nem mesmo saber por que”, acostumado que estou a ler
e aprender. Minha missão é espalhar pelos quatro cantos do mundo a linda
silhueta da cultura, o arcabouço da verdade literária, a escultura da forma
melhor de se olhar para um texto e dele absorver seu mais perfeito conteúdo: “a gloriosa arte da interpretação”.
Quando
brincava no Ingá do Bacamarte – PB – ficava com inveja dos meninos que chegavam
para a escola, (em frente da casa de meu cunhado Elino Torquato) montados em
seus cavalos. Ficava danado porque morava de cara com a escola. Aquilo não era
vantagem nenhuma, não podia ir estudar,
montado no meu alazão. Aprender sempre é muito bom, melhor ainda é antes do aprendizado,
cavalgar no galope dos sonhos que enchem as cabeças dos imberbes, atravessar
campos de gira-sóis que procuram o astro para alimentarem-se de vida, uma autêntica
súplica do vegetal que gorjeia deitado
nos raios solares. Observar é aprender, ler é desfrutar de uma narrativa,
quando o escrevinhador é um bom contador de histórias.
No
Ingá eu era menino, hoje sou um velho menino, ainda apaixonado pela leitura,
pelos livros, por contos, poesias e crônicas. Continuo sendo arrebatado por
duas ou mais letras ajuntadas formando sentido e lógica, empenho e louvor,
gracejo supimpa e envolvente, como acontece com os cordéis nordestinos. Quando
começo a ouvir um cordel tenho vontade de dormir em cima do sono, sem tirar os
olhos fechados de “arriba” do cordelista.
No
átrio da praça, quando me preparo para
ler em voz alta, meu peito infla de satisfação por ver as pessoas começarem a
se aglomerar para ouvir a palavra do autor (qualquer que seja), em forma de
mensagem otimista para aliviar as penas de todos os dias. Tenho que gritar para
o mundo inteiro escutar, para minha palavra entrar nas palhoças, nos barracos
analfabetos, nas reuniões políticas, nas
maternidades onde as crias dão seus primeiros gritos de independência, Onde quer que a palavra falada possa estar
presente, vibrante, e paternalista.
Uma
vez, na volta de minha ida, encontrei um fedelho com uma revistinha nas mãos, e
perguntei: _ Tá lendo esta revistinha, meu filho?
_Tô
não dotô, num sei lê!
_Quem
lhe deu esta revista de quadrinhos?
_Foi
um homi que passou por aqui indagorinha!
_Você
tem vontade de aprender a ler?
_É
só o que quero da vida, o sinhô pode me
ensinar? AGORINHA? Neste instante? Vou poder ler esta revista que gosto tanto
de olhar pra ela, sem saber o que está escrito! Quero transformar minha vida de
pobre, em vida rica de leitor, e garanto ao sinhô que nunca mais vou parar de
ler, de ler tudo que aparecer na minha frente. Posso garantir. Pudemo começar
agora? POR FAVOR???
Esta
avidez por leitura afogava a alma daquele menino sem que ele soubesse o motivo
de suas angústias. Esta historinha é parecida com milhões ao redor do nosso
mundo cheio de cicatrizes de ignorância.
Outro
dia, sem nem mesmo pensar no que ia fazer, vi-me no Engenho do Coronel Zé
Paulino, brincando com Carlos. Corríamos como uns desesperados por aquelas
terras sem fim. Carlos Melo era neto do Coronel, homem de garras firmes, de uma
só palavra, um verdadeiro deus naquelas redondezas. Ele adorava o neto Carlos,
órfão de mãe, e com o pai preso por ter matado a mãe do meu amigo. Carlinhos
ainda sofria com a perda repentina da mãe, em circunstancias tão desastrosas.
Quando o Rio Paraíba anunciou a cheia,
os moradores do engenho ficaram apavorados, pois conheciam a história de outras
enchentes daquele rio medonho. A água subia a ribanceira como se aquele fosse o
seu leito eterno, com uma força esmagadora, com vontade de destruir tudo o que
encontrasse pela frente. E foi destruindo mesmo, não ficou nada inteiro, ou no
mesmo lugar. A cama de Dona Mocinha foi encontrada, dias depois, a dois
quilômetros de distancia. A água chegou a lavar a varanda da casa grande, e só
não entrou na casa, porque o velho havia mandado construir com um metro de altura do solo. Foi a sorte.
Aquele rio já fez muitos estragos na sua eterna vida de sertão. (Menino do
Engenho – José Lins do Rego)
Quando
voltei pra vida estava suando de pavor, com aquela cheia traiçoeira, e
novamente eu havia me transferido para o romance do nosso querido José Lins do
Rego, paraibano de boa cepa.
Assim é a leitura, quando nos
entusiasmamos com a história, ou com a poesia. As paginas transferem-se para
dentro de nós, para fazermos parte da inspiração do autor. A este fenômeno eu chamo de:
“A MAGIA DA LEITURA”
Quase sempre fico extasiado com o
que leio, quando desfruto dos grandes autores, mesmo os desconhecidos da mídia.
Temos milhares de brilhantes escritores anônimos, com dificuldade de publicar
suas obras por falta de dinheiro, por escassez de oportunidades, porque não
contamos com o apoio do governo central, tão ignorante quanto aquele menino da
revistinha; a única diferença é que o menino aprendeu a ler...
Transfiro-me
para o livro,
ou
ele se transfere
para mim?
Anchieta Antunes
Gravatá –
21/05/2015.
Muito bom!
ResponderExcluir